ABRADEE contesta Despacho da STD que considera ilegal o cancelamento dos Orçamento de Conexão de MMGD por aplicação superveniente da REN 1.059/23

Contexto regulatório:

Em 1º de outubro de 2020, foi aberto o processo administrativo nº 48500.005218/2020-06 para discutir a consolidação dos atos normativos pertinentes à temática dos direitos do usuário do serviço público de distribuição de energia elétrica.

O produto das discussões no âmbito do referido processo foi a publicação da Resolução Normativa nº 1.000/2021 (“REN 1.000/2021”), que passou a ser o regulamento aplicável à prestação do serviço público de distribuição, estabelecendo todas as regras e direitos aplicáveis.

Com a publicação do Marco Legal de Micro e Minigeração Distribuída (Lei nº 14.300/2022), foi publicada, em 07 de fevereiro de 2023, a Resolução Normativa nº 1.059/2023 (“REN 1.059/2023”), que alterou dispositivos da REN 1.000/2021 em relação às regras para a conexão e o faturamento de centrais de micro e minigeração distribuída (“MMGD”) em sistemas de distribuição de energia elétrica.

Ocorre que, após a publicação da REN 1.059/2023, diversos Orçamentos de Conexão já emitidos, inclusive com contratos já celebrados, foram cancelados pelas distribuidoras do Grupo Energisa, sob o fundamento de que estes estariam inválidos por implicarem em comprometimento do sistema de distribuição. 

Em 13/07/2023, através de uma fiscalização realizada pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados de Mato Grosso – AGER/MT, a Energisa Mato Grosso recebeu o Relatório de Fiscalização RA 0003/2023-AGER/MT-SFT, o qual concluiu pelo irregular cancelamento de 607 (seiscentos e sete) Orçamentos de Conexão emitidos, tendo recomendado na ocasião que a Distribuidora procedesse com as seguintes providências:

              “a) Comunicar, pela mesma forma adotada para a invalidação, de que os orçamentos de conexão que foram indevidamente                    invalidados, estão válidos e serão cumpridos pela Distribuidora, e; 

              b) Restabelecer de forma integral o prazo de validade do orçamento de conexão invalidado, contado a partir do recebimento                      da  nova comunicação.”  

Ato contínuo, em 19/07/2023 a Superintendência de Regulação dos Serviços de Transmissão e Distribuição – STD/ANEEL emitiu o Ofício Circular nº 8/2023-SFT-SMA-STD/ANEEL, informando todas as Distribuidoras do Grupo Energisa sobre o teor do Relatório de Fiscalização da AGER/MT e recomendando a adoção das medidas nas demais Distribuidoras do grupo. 

Entretanto, em 16/08/2023 a Superintendência de Mediação Administrativa – SMA informou o recebimento de inúmeras Reclamações Administrativas relatando o cancelamento de Orçamentos de Conexão nos moldes praticados pelas Distribuidoras do Grupo Energisa e requereu o entendimento regulatório da STD sobre o tema.

Despacho nº 3.438/2023

Em 18/09/2023, a STD expediu o Despacho nº 3.438/2023, estabelecendo o entendimento regulatório vinculante que deveria ser aplicado aos casos envolvendo a utilização do art. 83 da REN 1.000/2021. 

Foi determinado às Distribuidoras do Grupo Energisa a adoção de diversas providências, dentre os quais destaca-se:

1. Nos casos em que houve cancelamento ou invalidação do Orçamento de Conexão de forma indevida, a Distribuidora deve restaurar a validade do Orçamento originalmente entregue, notificando o acessante com entrega comprovada, bem como restabelecer o prazo integral para a prática dos atos que foram prejudicados, contados do recebimento da notificação; 

2. Em caso de atraso para injeção de energia de unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída decorrente de conduta da Distribuidora de invalidação, cancelamento ou alteração do Orçamento de Conexão em desacordo com a regulação deve ser enquadrado como pendência de responsabilidade da Distribuidora

Na ocasião, a STD também reafirmou ser vedado à Distribuidora cancelar ou invalidar os Orçamentos de Conexão emitidos e entregues ao consumidor, principalmente após o aceite do documento. 

Recurso Administrativo interposto pela ABRADEE

Em 28/09/2023, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica – ABRADEE interpôs Recurso Administrativo em relação ao Despacho nº 3.438/2023, com pedido de concessão de efeito suspensivo, para requerer a revogação do ato. 

Como pedido alternativo, a ABRADEE requereu a revisão do entendimento regulatório para reconhecer a validade de Orçamentos de Conexão modificados por acordo tácito, preservando os acordos já celebrados.

O pedido de efeito suspensivo foi negado pelo Diretor-Geral, sob alegação de falta de “verossimilhança das alegações apresentadas (a aparência do bom direito)” e de “fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (o perigo na demora)“. A decisão foi formalizada por meio do Despacho nº 3.786/2023.

Embora o Recurso Administrativo protocolado esteja sob sigilo, foi possível extrair os argumentos apresentados pela Associação na Nota Técnica nº 127/2023 STD/ANEEL, nos quais se destacam:

1. Violação do devido processo legal administrativo: O primeiro ponto levantado pela Associação foi a suposta violação do devido processo legal. Isso porque a decisão da STD teria ultrapassado o limite da competência delegada pela Portaria nº 6.823/2023, além de que deveria ter sido realizada consulta pública e/ou aberta oportunidade para defesa das Distribuidoras. Houve discordância também em relação ao efeito retroativo das determinações normativas, que deveriam ter sido aplicadas apenas para o futuro, não podendo alcançar as ações já praticadas pelas Distribuidoras. 

2. Legitimidade da invalidação dos Orçamentos de Conexão: No segundo ponto, questionou-se a ilegitimidade da invalidação de orçamentos de conexão pelas Distribuidoras, argumentando-se que houve uma interpretação limitada e incompleta das normas vigentes. Alegou também que as hipóteses de invalidação não são exaustivas e que as Distribuidoras têm o direito de cancelar orçamentos para proteger o setor elétrico. Ademais, sustentou-se que a nova norma não proíbe retroativamente a invalidação e que os solicitantes já estavam cientes das mudanças regulatórias estudadas para a REN 1.059/2023.

3. Inaplicabilidade do CDC aos “investidores de minigeração distribuída”: O terceiro ponto defende a preservação dos acordos realizados em relação às novas regras da ANEEL. Criticou-se a ampliação do conceito de “consumidor” pelas áreas técnicas da ANEEL. Isso porque, no ponto de vista da ABRADEE, diferencia-se os investidores em minigeração distribuída de consumidores vulneráveis. Nesse sentido, a Associação argumentou que a proteção consumerista genérica não se aplica a esses agentes, tendo alertado que os custos adicionais suportados pelas distribuidoras serão repassados para as tarifas e, por consequência, aos demais consumidores cativos.

Na sequência, por meio da Nota Técnica nº 127/2023-STD/ANEEL, as áreas técnicas da Agência analisaram os argumentos trazidos pela Associação, tendo sedimentado o seguinte posicionamento: 

1. O Despacho nº 3.438/2023 tratou exclusivamente do entendimento regulatório a ser utilizado em atividades de ouvidoria setorial nos casos que envolvam a aplicação do art. 83 da Resolução Normativa nº 1.000/2021, não tendo afastado o direito das Distribuidoras ao contraditório e à ampla defesa nos processos de ouvidoria. Nesse ponto, considerando o escopo da decisão, que não implicou em alteração no regulamento, a manifestação da STD não dependeria da realização de um processo de participação pública ou da análise de impacto regulatório (AIR); 

2. O Despacho nº 3.438/2023 se insere dentro da competência da STD prevista no art. 1º, IV da Portaria nº 6.823, de 4 de maio de 2023, que estabelece as delegações para a Superintendência;

3. Não há evidência de que a exigência legal e regulatória de prestação de serviço público adequado autorize a elaboração, pelas próprias Distribuidoras, de orçamentos de conexão inadequados e/ou incompletos para que, na sequência, sejam por elas próprias cancelados ou invalidados; 

4. A REN 1.059/2023 não conferiu à Distribuidora a possibilidade de aplicação retroativa das alterações do art. 73 relacionadas à inversão de fluxo a Orçamentos de Conexão já emitidos ou a consumidores com contratos já celebrados;

5. As concessionárias do Grupo Energisa, ao invalidar os Orçamentos, alegou aos consumidores afetados a inversão de fluxo e o comprometimento do sistema de distribuição, mas não apresentou os estudos obrigatórios e previstos na regulamentação, nem as alternativas para eliminar a alegada inversão; 

6. Não obstante eventual divergência com o entendimento jurídico apresentado pela ABRADEE, o cerne da discussão não seria a aplicabilidade ou não do CDC aos chamados pela Associação de “investidores em minigeração distribuída”, posto que, na visão da STD, o Despacho nº 3.438/2023 não trata disso. Nos termos da Nota Técnica, a questão central é a observância da regulação da ANEEL, o seu flagrante descumprimento pelas Distribuidoras e o entendimento regulatório que deve ser aplicado na ouvidoria da Agência no âmbito das reclamações registradas pelos consumidores.

Sendo assim, as áreas técnicas da ANEEL recomendaram a manutenção da decisão contida no Despacho nº 3.438/2023, sugerindo que a Diretoria Colegiada da ANEEL negue provimento ao Recurso protocolado pela ABRADEE.

Em 15 de janeiro de 2024, o processo foi distribuído ao Diretor-Relator Ricardo Lavorato Tili, por meio da 1ª Sessão Pública Ordinária de Distribuição de Processos. Posteriormente, em 05 de fevereiro de 2024, o processo foi incluído na pauta de julgamento da 3ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria. No entanto, foi retirado de pauta e, atualmente, aguarda julgamento.

No entanto, no último dia 28/02/2024, foi expedido o Memorando nº 41/2024-ASD/ANEEL pela assessoria do Diretor-Relator, solicitando a manifestação da Procuradoria Federal adjunta à ANEEL sobre os seguintes pontos:

                       Memorando nº 41/2024-ASD/ANEEL 

                “a) Nos termos do art. 1º, inc. V da Lei nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022, o titular de unidade geradora de MMGD é considerado                      “consumidor-gerador”. Neste cenário, tendo em vista as disposições do CDC e a atual interpretação dada STJ para o conceito                    de consumidor, é possível afastar, conforme argumentado pela Abradee, a aplicação do CDC nas discussões travadas entre o                    minigerador e a distribuidora sobre dispositivos da REN nº 1.000/2021 e REN nº 1.059/2023? 

                b) O Despacho nº 3.483, de 2023, consolidou a interpretação dada pela STD sobre a aplicabilidade do art. 83 da REN 1.000. A                          Abradee alega que o referido Despacho constitui novação e/ou extrapola os limites do regulamento publicado. A interpretação                  dada pela STD por meio do referido Despacho está correlacionada com o texto normativo? 

                c) Possui embasamento legal e/ou jurisprudencial os argumentos da Abradee de que lhe é lícito aplicar retroativamente a REN                    1.059/2023 para invalidar os atos praticados e consolidados (contratos e orçamentos) preteritamente a égide da publicação da                  respectiva resolução normativa?”

Após o processo ser encaminhado à Procuradoria Federal junto à ANEEL, a ABRADEE realizou uma reunião com os membros do órgão para discutir as razões do Recurso Administrativo protocolado. Durante a reunião, conforme registros juntados ao processo, foram abordados temas relacionados à aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos consumidores com minigeração distribuída e à alegada aplicação retroativa da REN 1.059/2023.

Com a manifestação da Procuradoria, o caso será novamente incluído na pauta de julgamento das Reuniões Públicas Ordinárias da ANEEL e será deliberado pela Diretoria Colegiada.

Participação de agentes interessados no processo administrativo

Cabe ressaltar que o art. 2º, parágrafo único, inciso X da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999) estabelece que aos agentes impactados por eventuais decisões administrativas é garantida a produção de provas. 

Nesse sentido, além da ABRADEE, diversos consumidores com MMGD já se manifestaram no âmbito do processo administrativo em questão. Eles trouxeram à Agência os casos concretos nos quais as Distribuidoras do Grupo Energisa invalidaram os Orçamentos de Conexão emitidos, bem como o entendimento regulatório que consideram aplicável ao tema.

Tendo em vista a relevância do tema e o impacto que a decisão a ser proferida pela Diretoria Colegiada terá no procedimento de conexão das centrais com micro e minigeração distribuída, faz-se importante o acompanhamento dos desdobramentos do processo em questão.


Referência: 

Processo administrativo nº 48500.005218/2020-06.

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