ANEEL indefere a emissão de outorgas de autorização de geração por ausência de aporte de Garantia de Fiel Cumprimento, apesar do quesito ter sido dispensado pela REN 1.071/2023 para novas solicitações de outorgas

Na 4ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria Colegiada da ANEEL (20/02/2024), foi negado provimento ao Recurso Administrativo interposto por Complexo de Geração Eólica em face do Despacho SCE/ANEEL nº 2.060/2023, que indeferiu a emissão das outorgas de autorização, que eram elegíveis ao desconto na TUSD/TUST, por ausência de aporte da Garantia de Fiel Cumprimento (“GFC”).

O Caso

Em breve síntese dos fatos, em março de 2022, empreendedor interessado na implantação de centrais geradoras eólicas solicitou à ANEEL a emissão de autorização para geração sob o regime de Produção Independente de Energia Elétrica – PIE. 

No entanto, ao disponibilizar a documentação aplicável no Sistema GO da ANEEL, não foram apresentadas as GFCs, tendo o empreendedor acostado apenas um documento que informava que a seguradora estava atuando na tratativa de análise e contratação da Apólice do Seguro Garantia. 

Após solicitações das áreas técnicas da ANEEL para que as interessadas procedessem com a complementação da documentação requerida, ainda assim, não foram identificados os aportes das GFCs, motivo pelo qual o pleito de emissão de outorga foi indeferido, por meio do Despacho nº 2.060/2023. 

Em face do indeferimento, as interessadas interpuseram, em 10/07/2023, Recurso Administrativo, com objetivo de reformar a decisão. Na visão do empreendedor, a decisão da área técnica da Agência estava eivada de vício insanável, pelas principais razões:

1. Houve o descumprimento dos artigos 39 e 40 da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/199), que preconiza que, “quando for necessária a prestação de informações ou a apresentação de provas pelos interessados ou terceiros, serão expedidas intimações para esse fim, mencionando-se data, prazo, forma e condições de atendimento”. Sendo assim, entenderam as interessadas que a ANEEL deveria ter questionado à apresentação dos seguros garantia, oportunizando a realização da juntada;

2. O entendimento exarado violou as garantias legais das interessadas, posto que restringiu a concessão do desconto na TUSD/TUST, quando os processos administrativos ainda estavam em andamento e em fase instrutória;

3. O Parecer nº 00077/2021/PFANEEL/PGF/AGU emitido pela Procuradoria Federal junto à ANEEL já sedimentou o entendimento de que a mera atualização da documentação não é impedimento para a percepção dos descontos no fio;

4. A alegação da ANEEL de que as normas relativas aos pleitos de obtenção de outorga e de concessão do desconto na TUSD/TUST devem ser interpretadas restritivamente viola os dispositivos da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro.

Nota Técnica nº 754/2023-SCE/ANEEL

Em sede de juízo de reconsideração, a SCE emitiu, em 24/10/2023, a Nota Técnica nº 754/2023-SCE/ANEEL, analisando os argumentos apresentados no Recurso Administrativo, tendo decidido pela manutenção do Despacho nº 2.060/2023, pelos seguintes motivos:

1. Nos termos do Parecer nº 00077/2021/PFANEEL/PGF/AGU emitido pela Procuradoria Federal junto à ANEEL, o pedido de outorga apresenta vício insanável, posto que não apresentou, até o prazo de 02 de março de 2022, a documentação completa para obtenção da outorga de autorização;

2. Não se pode confundir uma carta de cotação de seguro com a sua efetiva contratação;

3. Os processos instruídos após a publicação da Lei nº 14.120/2021 seguem o mesmo rito, de modo que se os agentes não tenham protocolado a totalidade da documentação até 02/03/2022, os pleitos são indeferidos;

4. Há a possibilidade de as interessadas dar continuidade na instrução do pedido de outorga, no entanto, sem o direito ao desconto na TUSD/TUST;

5. O entendimento da Procuradoria no Parecer nº 00077/2021/PFANEEL/PGF/AGU é de que é possível a complementação de informações de pouca importância. No caso dos agentes, a empresa deixou de apresentar um documento necessário a emissão da outorga.

Em face dos argumentos apresentados na Nota Técnica em referência, o agente protocolou nova manifestação, com a finalidade de trazer ao conhecimento da Agência um fato novo, capaz de robustecer a fundamentação do Recurso Administrativo.

Na ocasião, argumentou que com a publicação da Resolução Normativa nº 1.071/2023 e a revogação da Resolução Normativa nº 876/2020, a ANEEL excluiu o excesso de formalismo dos requisitos e procedimentos necessários à obtenção das outorgas de autorização, suprimindo a obrigatoriedade do aporte da GFC para a emissão das outorgas de centrais geradoras eólicas.

Nesse sentido, as interessadas sustentaram que os requerimentos de outorga deveriam ser deferidos, considerando que não é mais necessária a apresentação da GFC.

O julgamento pela Diretoria da ANEEL

O processo foi distribuído ao Diretor-Relator Fernando Mosna e incluído na pauta de julgamento da 46ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria Colegiada da ANEEL (12/12/2023). 

Durante a sessão, o Diretor-Relator emitiu um Voto argumentando que, tendo em vista que a Resolução Normativa nº 1.071/2023 desobrigou o aporte da GFC e que a empresa apresentou toda a documentação necessária para obtenção das outorgas, o entendimento da área técnica da Agência estava equivocado.

Além disso, o Diretor-Relator ponderou a aplicação do princípio do informalismo moderado, que preconiza que o processo administrativo deve instituir ritos e formas simples, de modo a proporcionar segurança jurídica, sem constituir um fim em si mesmo.

Em função disso, entendeu que a edição do novo normativo, que facultou a devolução de documentos anteriormente exigidos, deve ser estendida aos interessados que ainda não os tenham apresentado, haja vista que o formalismo só deve ser imposto quando for necessário para proteger os direitos dos particulares e resguardar o interesse público.

Entretanto, após discussões em mesa, o Diretor Hélvio Neves Guerra solicitou vistas ao processo, para analisá-lo com mais detalhes. Posteriormente, o processo foi novamente pautado para julgamento na 4ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria Colegiada da ANEEL (20/02/2024).

No Voto-Vista apresentado, o Diretor Hélvio Neves Guerra ressaltou que, para fazer jus ao desconto, é necessária a apresentação da documentação completa até o dia 02/03/2022. No caso em tela, as interessadas não protocolaram a GFC, mas tão somente uma declaração em que a seguradora “informa que está tratando e analisando a cotação da Apólice de Seguro Garantia”.

Ademais, pontuou que o parecer da Procuradoria não socorre as interessadas nesse caso, porque não se trata de uma atualização da documentação apresentada anteriormente, ao passo que não se trata de uma informação de pouca importância. 

No tocante ao argumento de que a Resolução Normativa nº 1.071/2023 deixou de exigir o aporte da GFC no processo de solicitação de outorga, o Diretor Hélvio Neves Guerra elucidou que as garantias passaram a ser apresentadas no âmbito dos Contratos de Uso do Sistema de Transmissão – CUST, posto que a ANEEL entendeu que, dessa forma, a exigência seria mais efetiva para o fim de proteger o acesso à rede. 

Sendo assim, diferentemente do que trouxeram as interessadas, na visão do Diretor, o empreendedor continua tendo que apresentar garantias antes da outorga, e o novo regulamento apenas migrou a apresentação do processo de outorga para os contratos de uso. 

Desse modo, as garantias financeiras não passaram a ser tratadas como exigências supérfluas, de modo que representam um requisito essencial à garantia do interesse público.

Veja-se trecho do Voto-Vista: 

“21. No caso específico dos empreendedores que estavam com processo de outorga em andamento foi-lhes assegurado o direito de reaver a GFC aportada, sem exigência de apresentação das garantias nos contratos de uso. Todavia, isso não foi estabelecido com o fito de validar outorgas indeferidas por ausência da GFC, tampouco para ressuscitar direito a descontos tarifários daqueles que não cumpriram as exigências legalmente estabelecidas. Caso contrário, estaríamos aceitando a tese de que regulamentações posteriores poderiam reestabelecer direitos após prazo determinado em Lei, o que, por óbvio, não prospera. 

22. De modo objetivo, o desconto deve ser concedido àqueles que apresentaram documentação completa de outorga até 2 de março de 2022, não cabendo à ANEEL restringir o direito aos que cumpriram tal critério, ou expandir os descontos a quem não o cumpriu. Não se trata de avaliar a importância da documentação ou a boa-fé do agente, mas unicamente o cumprimento do critério objetivo para concessão do desconto. No caso em tela, a Interessada nunca alegou ter cumprido com o requisito, apenas questiona a validade de documento com data retroativa, ou a necessidade do documento que deixou de ser apresentado em face de regulamentação posterior. Entretanto, até a data estabelecida na Lei nº 14.120/2021, os documentos não foram protocolados por responsabilidade do empreendedor, e isso é suficiente para afastar o seu direito aos descontos.” 

Sendo assim, o Voto-Vista emitido pelo Diretor Hélvio Neves Guerra divergiu do proferido pelo Diretor-Relator Fernando Mosna, tendo concluído pelo indeferimento do Recurso Administrativo interposto pelas interessadas. 

Ocorre que, nas deliberações da mesa, o Diretor-Relator Fernando Mosna retificou seu voto, acompanhando os termos do Voto-Vista proferido pelo Diretor Hélvio Neves Guerra. 

Por outro lado, o Diretor Ricardo Lavorato Tili acompanhou o Voto proferido pelo Diretor-Relator no âmbito da 46ª Reunião Pública Ordinária de 2023. 

Dessa forma, a Diretoria, por maioria, acompanhando o Voto-Vista do Diretor Hélvio Neves Guerra e vencido o Diretor Ricardo Lavorato Tili, decidiu conhecer e, no mérito, negar provimento ao Recurso Administrativo interposto em face do Despacho nº 2.060/2023. A decisão foi materializada por meio do Despacho nº 494/2024.

Considerações sobre o tema

Em nossa perspectiva, o julgamento do tema pela ANEEL é importante pelo seguinte aspecto de entendimento da Agência Reguladora: 

(1) Os pleitos de solicitação de outorga com descontos na TUSD/TUST em trâmite perante a Agência devem ter sido protocolados com a                    documentação integral até o dia 02/03/2022. 

Nesse sentido, é preciso observar que a ANEEL sedimentou o entendimento de que, para fins da concessão dos descontos, só são permitidas atualizações da documentação já apresentada anteriormente.

Dessa forma, esses termos devem ser observados pelos empreendedores com o processo de obtenção de outorga em tramitação perante a ANEEL, ainda que a REN 1.071/2023 tenha alterado os quesitos documentais necessários para a solicitação de novas outorgas de autorização. 

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Nota ao leitor: O presente estudo de caso foi baseado nos processos administrativos nº 48500.000371/2018-14, 48500.000372/2018-69, 48500.001490/2013-80, com destaque para o Parecer nº 00077/2021/PFANEEL/PGF/AGU subscrito pela Procuradoria Federal junto à ANEEL, e para os votos proferidos na 46ª e 4ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria Colegiada da ANEEL, que culminou no Despacho nº 494/2024. Além disso, com o intuito de focar na técnica decisória da Agência Reguladora, foram intencionalmente omitidos os nomes dos agentes relacionados ao pleito administrativo.

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