ANEEL valida transferência de titularidade de contas de energia para migração de consumidores ao mercado livre
Na 45ª Reunião Pública de Diretoria da ANEEL (05/12) foi julgado Pedido de Impugnação interposto por consumidor especial em face da decisão da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que indeferiu a solicitação de adesão do agente em alegação à ocorrência de irregularidade na configuração da comunhão de direito entre unidades consumidoras reunidas para a configuração do requisito de carga de 500 kW.
O caso
Em 2022, um determinado agente apresentou solicitação de adesão à CCEE enquanto consumidor especial de energia elétrica, com a requisição de modelagem de 03 (três) unidades consumidoras em seu perfil.
Muito embora os dados técnicos relacionados ao cadastro do ponto de medição do agente, à data da migração das unidades consumidoras e à contratação do uso da rede elétrica estivessem em conformidade com a regulação, a CCEE identificou que as unidades consumidoras a serem modeladas no perfil do consumidor especial estavam vinculadas a estabelecimentos comerciais de pessoas jurídicas sem correlação com o CNPJ do consumidor especial solicitante da adesão.
A CCEE investigou que o CNPJ do consumidor especial possuía em seu objeto social a atividade de prestação de serviços de operação, manutenção e gestão de eficiência energética, enquanto as unidades consumidoras a serem modeladas no perfil seriam conjugadas a estabelecimentos comerciais diversos e sem relação entre si, contemplando um posto de combustíveis, um condomínio e um centro de pesquisas.
A decisão da CCEE
Em análise do arranjo proposto, a CCEE entendeu que o consumidor especial havia transferido a titularidade das unidades consumidoras de estabelecimentos comerciais com enquadramento tarifário no Grupo A para o seu CNPJ, com o objetivo de possibilitar a migração das unidades para o mercado livre por comunhão de direito, nos termos da Lei 9.427/96. Veja-se:
Lei 9.427/96
Art. 26. Cabe ao Poder Concedente, diretamente ou mediante delegação à ANEEL, autorizar:
§ 5o Os aproveitamentos referidos nos incisos I e VI do caput deste artigo, os empreendimentos com potência igual ou inferior a 5.000 kW (cinco mil quilowatts) e aqueles com base em fontes solar, eólica e biomassa cuja potência injetada nos sistemas de transmissão ou distribuição seja menor ou igual a 50.000 kW (cinquenta mil quilowatts) poderão comercializar energia elétrica com consumidor ou conjunto de consumidores reunidos por comunhão de interesses de fato ou de direito, cuja carga seja maior ou igual a 500 kW (quinhentos quilowatts), observados os prazos de carência constantes do art. 15 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, conforme regulamentação da Aneel, podendo o fornecimento ser complementado por empreendimentos de geração associados às fontes aqui referidas, visando à garantia de suas disponibilidades energéticas, mas limitado a 49% (quarenta e nove por cento) da energia média que produzirem, sem prejuízo do previsto nos §§ 1o e 2o deste artigo.
No entendimento da CCEE, por mais que o consumidor especial fosse titular dos Contratos de Uso do Sistema de Distribuição – CUSDs das unidades consumidoras a serem modeladas no perfil, não seria ele o consumidor de fato da energia. Com isso, haveria uma comercialização irregular de energia elétrica por meio do arranjo sugerido.
Por mais que no momento da requisição da adesão do consumidor livre estivesse vigente a Portaria do Ministério de Minas e Energia – MME que previa a carga mínima de 500 kW como requisito para migração para o mercado livre, com a superveniência da publicação da Portaria MME nº 50/2022, qualquer consumidor enquadrado no Grupo A estaria elegível à migração para o mercado livre a partir de 2024.
Ocorre que, no entendimento da CCEE, o arranjo pretendido configuraria uma oportunidade econômica que causaria distorção regulatória, à medida que a migração de unidades consumidoras com carga inferior a 500 kW deveria ser efetuada necessariamente por meio do perfil de comercializador varejista, nos termos do art. 22 da Resolução Normativa nº 1.011/2022. Veja-se:
Resolução Normativa nº 1.011/2022
Art. 22. A representação de ativos de titularidade de terceiros por agentes da CCEE somente é admitida na forma e condições estabelecidas por esta Resolução.
§1º É vedada a alteração das representações a que alude o caput efetivadas nos termos das normas então em vigor, hipótese em que estão obrigadas ao cumprimento do disposto nesta Resolução.
§ 2º Fica dispensada a apresentação do CONTRATO PARA COMERCIALIZAÇÃO VAREJISTA pelos agentes da CCEE que, antes de 1º de agosto de 2013, já representavam agentes de geração com participação facultativa na CCEE.
Assim, dentro de uma óptica de monitoramento prudencial de mercado, a CCEE entendeu que o arranjo pretendido não poderia ser acatado, posto que a comercialização varejista traria maior segurança para esse tipo de perfil de consumo inferior a 500 kW, dado que é o comercializador que assume os riscos ínsitos à contratação da energia e a sua modulação dentro da CCEE, com maior grau protetivo aos consumidores.
Nesse sentido, a CCEE julgou não atendido o requisito de habilitação técnica do consumidor especial, motivo pelo qual indeferiu o pedido de adesão.
A defesa do agente
O agente apresentou Pedido de Impugnação em face da decisão da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), aduzindo que não haveria comercialização irregular, dado que o consumidor especial adquiria energia no mercado livre, em nome próprio, por sua conta e risco, não havendo a representação de terceiros.
Com isso, o agente defendeu que a atividade desempenhada de gestão das unidades consumidoras a serem incluídas em seu perfil não envolveria a comercialização de energia, direta ou indiretamente, mas somente a prestação de serviços de gestão, instrumentalizada através de comodato.
Em relação à conformidade da transferência de titularidade das unidades consumidoras, o agente alegou que a regulação da ANEEL, notadamente a Resolução Normativa nº 1.000/2021, não requer a comprovação de vínculo especialíssimo entre o estabelecimento comercial e o titular da unidade consumidora, sendo bastante para a condição de consumidor (1) comprovar a posse e/ou propriedade das instalações por meio idôneo; e (2) solicitar o fornecimento do serviço à Distribuidora.
Assim, no sentido de que o que não é expressamente proibido pela legislação, deverá ser autorizado ao privado exercer o referido arranjo dentro de sua esfera de liberdade e de livre iniciativa. A preocupação da CCEE com o monitoramento prudencial de mercado não seria motivo apto a invalidar o arranjo de migração para a Câmara pretendido pelo agente.
O Parecer da Procuradoria Federal
Em manifestação, a Procuradoria Federal adjunta a ANEEL opinou pela conformidade do arranjo pretendido pelo agente, destacando que a comunhão de direito seria regularmente constituída para todos os fins legais com a transferência de titularidade das unidades consumidoras para o CNPJ do consumidor especial. Transcreve-se:
Parecer n. 00360/2022/PFANEEL/PGF/AGU
“A forma como essa comunhão de direito é constituída também parece estar respaldada pela regulação em vigor já que, basicamente, tal relação jurídica nasce a partir do momento em que há a transferência da titularidade de diversas unidades consumidoras para o nome da empresa intermediadora. E a transferência de titularidade, por sua vez, é um direito assegurado ao consumidor pela Resolução Normativa nº 1.000/2021, desde que atendidas determinadas exigências da distribuidora.”
O voto-relator
O julgamento do Pedido de Impugnação teve início na 8ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria da ANEEL, em 21/03/2023.
Na oportunidade, o Diretor-Relator Hélvio Neves destacou que o mérito do julgamento estaria restrito à licitude do arranjo, de tal forma que pelo que foi exposto pelas áreas técnicas da Agência Reguladora e pela Procuradoria Federal não haveria óbices à exploração do modelo nos moldes pretendido pelo agente.
Nesse sentido, o Diretor-Relator entendeu por conceder provimento ao Pedido de Impugnação.
Em deliberação, o Diretor Sandoval Feitosa solicitou vistas ao processo para melhor formação de seu convencimento.
Complementação da instrução processual
Em complementação à instrução processual, o Diretor do pedido de vista requereu (1) a avaliação dos impactos do arranjo proposto na antecipação da abertura do mercado livre, bem como o efeito decorrente no Ambiente de Contratação Regulada (ACR); e (2) a análise do contrato de prestação de serviços entre o agente e as unidades consumidoras para o fim de verificação de se haveria a comercialização de energia elétrica de forma indireta.
Em síntese, as áreas técnicas da ANEEL se posicionaram no sentido de que não se esperava impacto extraordinário nas migrações para o mercado e que, em face da Portaria MME nº 50/2022, haveria tendência à adoção da solução da comercialização varejista.
Memorando nº 62/2023 – STD/ANEEL
Destaque-se, ainda, que será possível a adesão desses consumidores ao ACL já partir de janeiro de 2024, sob égide de um comercializador varejista, com todas as garantias e procedimentos previstos na regulamentação vigente. Portanto, modelos que se aproveitam de eventuais distorções normativas e sejam inoportunos aos consumidores, como sustenta a CCEE, tenderão ao não mais prosperarem. Ou seja, os próprios agentes de mercado evitarão modelos calcados em lacunas normativas e preferirão os sustentados pelo arcabouço legal e normativo setorial.
Em análise do contrato adotado no arranjo, foi visto que o contrato de prestação de serviços envolvia a remuneração pelos serviços de gestão das unidades consumidoras e o ressarcimento dos custos incorridos na aquisição de energia elétrica. Entretanto, uma vez que o agente assumiria o risco da operação, inexistiria fraude e/ou simulação danosa na operação.
O julgamento
Na 45ª Reunião Pública de Diretoria da ANEEL (05/12), foi concluído o julgamento do Pedido de Impugnação, em relação ao qual foi concedido provimento ao pedido por unanimidade, atestando-se a conformidade regulatória do arranjo proposto pelo agente.
Adicionalmente, houve recomendação para a manutenção do monitoramento prudencial do mercado na CCEE com vistas a parametrizar os impactos de arranjos análogos nas operações do mercado livre.
Conexões temáticas – Alterações na REN 1.000/2021
No Processo Administrativo nº 48500.003729/2023-28, em que são avaliadas alterações normativas na Resolução Normativa nº 1.000/2021 quanto ao aprimoramento da regulação aplicável à micro e/ou minigeração distribuída, as áreas técnicas da ANEEL avaliam a possibilidade de (1) operacionalizar a transferência da titularidade das contas de energia elétrica para os veículos de geração compartilhada com (2) a manutenção do relacionamento operacional da Distribuidora com o titular anterior da fatura de energia elétrica.
Assim, caso aprovada a alteração, o veículo associativo deixará de assumir a responsabilidade civil- administrativa perante a concessionária e/ou permissionária de distribuição em relação a unidade consumidora cuja titularidade foi transferida.
De forma análoga, muito embora a migração de unidades consumidoras para o mercado livre altere o âmbito do fornecimento de energia elétrica do ambiente regulado para o livre, o relacionamento operacional pelo uso da rede elétrica tenderá a permanecer com a distribuidora local, sendo, portanto, regido pela Resolução Normativa nº 1.000/2021.
Nesses termos, a depender das alterações promovidas na Resolução Normativa nº 1.000/2021, o arranjo descrito no presente estudo de caso poderá ter seus riscos mitigados quanto à limitação da responsabilidade civil- administrativo pela gestão da unidade consumidora e eventuais comportamentos infracionais no uso da rede elétrica.
Nota ao leitor: O presente artigo foi elaborado com base no Processo Administrativo nº 48500.008306/2022-12 e no julgamento realizado na 45ª Reunião Pública de Diretoria da Aneel de 2023. Além disso, com o intuito de focar na técnica decisória da Agência Reguladora, foi intencionalmente omitido o nome do agente relacionado ao pleito administrativo.