Análise de Riscos Regulatórios: Processo Fiscalizatório do TCU em Relação à Apuração de Enquadramento dos Modelos de Negócio da Geração Compartilhada como uma Venda de Energia Elétrica

Em artigo divulgado em 20/03/2024 (link), tratamos sobre os principais aspectos do Processo TC 005.710/2024-3, em que o Tribunal de Contas da União (TCU) acolheu representação formulada pela Unidade de Auditoria Especializada em Energia Elétrica e Nuclear – AudElétrica no sentido de apurar condutas indiciárias do setor de micro e minigeração distribuída – MMGD em relação a eventual comercialização ilegal de créditos de energia elétrica. 

Após o recebimento da representação, através de Despacho datado em 13/03/2024, o TCU requereu a manifestação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) no prazo de 15 (quinze) dias, com o objetivo de que a Agência se posicionasse sobre as pretensas irregularidades identificadas no mercado de MMGD pela AudElétrica e sobre a possibilidade da promoção de melhorias na regulamentação e/ou fiscalização do tema. 

Assim, no presente artigo, será efetuada uma análise sobre os riscos regulatórios identificados no processo fiscalizatório do TCU, bem como os principais aspectos de defesa em relação aos limites de regulamentação do tema, considerando que de acordo com o art. 146 do Regimento Interno do Tribunal de Contas é possível a habilitação de interessados para manifestação no processo em curso. 

De antemão, a despeito de discussões afetas ao ativismo do TCU, é preciso ver que a competência do Tribunal no presente tema está respaldada na fiscalização de política pública tarifária, haja visto o intento de averiguar a regular aplicação dos recursos provenientes da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE as quais subsidiam os incentivos tarifários em MMGD, nos termos da Lei 14.300/2022. Dessa forma, a competência legal para o desenvolvimento e a regulamentação da matéria ainda permanece sendo da ANEEL, por força da Lei 9.427/1996. 

Em outros termos, caso a fiscalização do TCU conclua pela necessidade de regulamentação do funcionamento das operações de MMGD, a ANEEL deverá proceder com a elaboração da regulação pertinente, não cabendo ao TCU tal missiva. 

Inclusive, caso seja esta a conclusão da fiscalização do TCU, foi indicado previamente pelo órgão de controle que haveria a necessidade de a ANEEL garantir a ampla defesa e o contraditório dos empreendimentos enquadrados como irregulares, bem como prever a possibilidade de regularização dos empreendimentos, nos termos do §5º do art. 655- M e do art. 655 – F da REN 1.000/2021. Veja-se: 

Resolução Normativa nº 1.000/2021 (com alterações pela REN 1.059/2023)

Art.655- M. (…) § 5º É vedada a comercialização de créditos e excedentes de energia, assim como a obtenção de qualquer benefício na alocação dos créditos e excedentes de energia para outros titulares, aplicando-se as disposições do art. 655-F caso isso seja constatado. (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

Art. 655-F. Na ocorrência de indício de recebimento irregular de benefício associado ao SCEE, a distribuidora deve adotar as providências para sua fiel caracterização, compondo um conjunto de evidências que comprovem o recebimento irregular do benefício. (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

§1º Na aplicação deste artigo, a distribuidora deve utilizar o procedimento descrito do art. 325. (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

§2º Caso se constate recebimento irregular de benefício associado ao SCEE, a distribuidora deve adotar as seguintes providências: (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

I – desconsiderar a energia ativa injetada pela unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída a no SCEE e benefícios recebidos nos faturamentos a partir da constatação, até que a situação seja regularizada; e (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

II – revisar o faturamento das unidades consumidoras indevidamente beneficiadas, desconsiderando a energia ativa injetada pela unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída no SCEE e benefícios recebidos durante o período em que se constatou a irregularidade, aplicando os seguintes parâmetros: (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

a)   as quantias a serem recebidas ou devolvidas devem ser atualizadas monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA; (Incluída pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

b)   os prazos para cobrança ou devolução são de até 36 ciclos de faturamento; e (Incluída pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

c)    a cobrança pode ser parcelada a critério da distribuidora, nos termos do art. 344. (Incluída pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

Como ementado acima, pela atual matriz de riscos regulatórios da REN 1.000/2021, caso haja a constatação da irregularidade na comercialização de créditos de energia ou de energia elétrica em MMGD, deverá ser desconsiderado o faturamento e/ou os benefícios advindos da geração a partir da constatação da irregularidade até o momento de sua regularização. 

Para mais, poderá haver a revisão do faturamento durante o período de apuração do funcionamento irregular do empreendimento em relação, inclusive, às unidades consumidoras beneficiárias da geração. 

Feitas essas considerações iniciais, passaremos a tratar dos principais aspectos de defesa em relação aos cenários de irregularidade apresentados no processo fiscalizatório. 

Regulamentação sobre o funcionamento das gerações compartilhadas 

Dentre os cenários indiciários de irregularidade averiguados pelo TCU consta a operacionalização de geração compartilhada através de veículos que permitem a assinatura de energia com desconto garantido. 

Em síntese, a partir da adesão ao veículo de geração compartilhada via assinatura de energia, o consumidor adquire créditos de energia elétrica, os quais correspondem a desconto percentual garantido na fatura de energia elétrica do consumidor. Em alguns casos, foi relatada a indexação da remuneração dos contratos de adesão aos veículos de geração compartilhada à tarifa de energia homologada para a Distribuidora local. 

Nesses termos, o TCU expõe uma série de questionamentos acerca da legalidade de funcionamento dos veículos associativos dentro de seus arranjos societários, dentre os quais se exemplifica a adesão à veículo de cooperativa ou associação condicionado à outorga de poderes a um único agente, que exauriria o seu caráter associativo. 

Isso porque, na visão do TCU, haveria um contrato de adesão, cuja operação empresarial seria integralmente gerida e conduzida por um único agente, sem a possibilidade de ingerência dos participantes do veículo nos atos administrativos e, no caso das cooperativas, com mácula ao princípio do controle democrático pelos sócios. 

Assim, sem o prejuízo da necessidade de adequação dos veículos de geração compartilhada, de modo a compatibilizarem sua atuação a uma eventual definição da ANEEL e do TCU sobre os modelos de negócio possíveis de serem explorados sem ferir o art. 28 da Lei 14.300/2022, o risco regulatório que se deflagra nos contornos assumidos pela fiscalização do TCU é a limitação à liberdade empresarial na exploração dos veículos admitidos para geração compartilhada. 

Isso porque os veículos associativos de consórcio, cooperativa, associação e condomínio voluntário e edilício, previstos no inciso X do art. 1º da Lei 14.300/022 para operacionalização da geração compartilhada, possuem legislações específicas para os seus regramentos de funcionamento. 

Portanto, não podem ser simplesmente derrogados por regulamentação da ANEEL, porquanto previamente validados pelos órgãos de registro que lhe asseguram a conformidade e a aderência de operação. 

Sobre o assunto, vale lembrar que recentemente, em caso julgado na 45ª Reunião Pública da Diretoria da ANEEL (05/12), a Agência Reguladora validou a conformidade de arranjo de migração de unidades de consumidoras para o mercado livre a partir da comunhão de direito, sendo que tal comunhão se afigurava pela transferência de titularidade das contas de energia para uma determinada pessoa jurídica, responsável pela operação e manutenção das unidades consumidoras. 

Através do Parecer nº 00360/2022/PFANEEL/PGF/AGU, a Procuradoria Federal adjunta a ANEEL opinou pela conformidade do arranjo pretendido pelo agente, destacando que a comunhão de direito seria regularmente constituída para todos os fins legais com a transferência de titularidade das unidades consumidoras para o CNPJ do consumidor especial. Veja-se: 

Parecer n. 00360/2022/PFANEEL/PGF/AGU 

A forma como essa comunhão de direito é constituída também parece estar respaldada pela regulação em vigor já que, basicamente, tal relação jurídica nasce a partir do momento em que há a transferência da titularidade de diversas unidades consumidoras para o nome da empresa intermediadora. E a transferência de titularidade, por sua vez, é um direito assegurado ao consumidor pela Resolução Normativa nº 1.000/2021, desde que atendidas determinadas exigências da distribuidora.

Nos moldes apresentados pela Agência Reguladora em relação à conformidade da transferência de titularidade das unidades consumidoras e da relação contratual performada por meio de operação de gestão do consumo da unidade, é defensável parte dos questionamentos trazidos pelo TCU sobre essa mesma modelagem em MMGD. 

Para saber mais sobre o relato do caso, é possível acessar o artigo elaborado por nosso escritório sobre o assunto (link). 

Regulamentação sobre a locação de ativos de centrais de micro e/ou minigeração 

Outro cenário de problematização na operação de MMGD apontado pelo TCU foi a rentabilização das centrais de micro e/ou minigeração mediante o pagamento de aluguel. 

Nos termos apresentados pelo TCU, o aluguel de usinas se aproximaria de compra e venda de energia. Entretanto, na ponderação do TCU, a atividade deveria ser outorgada a Produtores Independentes de Energia (PIE), os quais podem contratar com consumidores livres ou especiais, não havendo autorização legal para contratar com consumidores cativos e/ou residenciais. 

Dessa forma, o risco regulatório associado à colocação do TCU está relacionado à vedação ao aluguel de ativos de geração de MMGD para titulares que pretendem aderir e operar a central geradora dentro do Sistema de Compensação de Créditos de Energia Elétrica – SCEE através de autoconsumo ou de geração compartilhada. 

Ocorre que essa questão já foi enfrentada outrora pela Agência Reguladora através do processo regulatório que aprovou a revisão da Resolução Normativa nº 482/2012 pela Resolução Normativa nº 687/2015, as quais compunham o antigo marco normativo da micro e minigeração distribuída. 

Na oportunidade, que visava incluir o conceito de geração compartilhada no modelo regulatório de MMGD, foi dito que o veículo da compartilhada precisava estar vinculado à geração, independentemente de se o vínculo se daria por meio de contrato de aluguel, arrendamento ou até mesmo comodato em relação à comprovação dos direitos sobre a operação dos ativos de geração. Veja-se: 

Voto-Relator da REN 687/2015 (Processo Administrativo 48500.004924/2010-51)

17. Nesse ponto, a Procuradoria por meio do Parecer no 542/2015/PFANEEL/PGF/AGU, conclui pela impossibilidade normativa de os consumidores cativos optarem pela contratação direta de energia elétrica, como se consumidores livres fossem, inclusive mediante contrato de aluguel ou arrendamento de terrenos e equipamentos com contraprestação pecuniária expressa em unidades monetárias por unidades de energia. 

18. Por outro lado, como visto acima, não há a mesma restrição normativa para que os consumidores cativos exerçam a atividade de autoprodução de energia elétrica (ou de autoconsumo, conforme a nomenclatura da Resolução Normativa no 482, de 2012, que busca enfatizar a característica de consumidor de quem optou por instalar a micro e minigeração distribuída), podendo os mesmos exercerem a posse do terreno e dos equipamentos de geração por meio de contratos de aluguel e de arrendamento cuja contrapartida não seja, fundamentalmente, o pagamento pela energia produzida. Em outras palavras, os contratos de equipamentos podem possuir cláusulas definindo o pagamento de parcelas variáveis associadas ao rendimento e à performance técnica dos equipamentos, mas o valor da parcela principal deve ser fixo de modo a não caracterizar a comercialização de energia elétrica. 

19. Ressalta-se que esse tipo de arranjo, no qual a geração é remunerada por meio de pagamento de aluguel proporcional à quantidade gerada, não se confunde com a geração compartilhada. No primeiro caso, o consumidor cativo adquire energia elétrica produzida por central geradora de terceiro, ao qual o consumidor vincula– se mediante pagamento pecuniário na forma de cota ou aluguel de imóvel em unidades monetárias por unidades de energia produzida, o que é vedado pela legislação vigente. Por sua vez, na geração compartilhada os consumidores reúnem-se por meio de cooperativa, por exemplo, e essa cooperativa da qual eles fazem parte torna-se titular de unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída. Assim, esses consumidores são, de fato, os titulares – mesmo que indiretamente – da unidade consumidora na qual a micro ou minigeração está instalada, não se caracterizando como consumidores livres ou especiais. 

Como pode ser visto no exceto acima, não caberia à Agência Reguladora ingerir na forma de exercício sobre os direitos de posse e/ou propriedade dos ativos de geração, sendo bastante haver tal comprovação e que os contratos correlatos não sejam remunerados com base em unidade monetária por unidade de energia produzida, o que configuraria a comercialização direta de energia elétrica. 

Nesse sentido, considerando a importância da discussão em trâmite no âmbito do TCU e do impacto que a possível regulamentação da ANEEL trará sobre o tema, faz-se relevante o acompanhamento dos desdobramentos do Processo TC 005.710/2024-3.

Compartilhar:

Share on linkedin
Share on email
Share on whatsapp
Share on print